Wagner Gonzalez |
Na F-1 sinal dos tempos vem dos boxes
Por mais que ordens de equipe sejam usadas no
automobilismo, o que Toto Wolff praticou no GP da Rússia disputado domingo em
Sochi fez o Barão Pierre de Coubertin revirar em seu túmulo. Coincidência ou
não, isso aconteceu na corrida disputada no Parque Olímpico desse balneário
russo, onde a ordem dada a Valtteri Bottas esteve longe do ideal do nobre
francês; educador renomado do seu tempo, Coubertin é autor de frases como “L'important
dans la vie ce n'est point le triomphe, mais le combat, l'essentiel ce n'est
pas d'avoir vaincu mais de s'être bien battu". Em uma tradução livre e
sintética, "o importante na vida não é a vitória, mas o combate, o
essencial n'ão é vencer, mas ter lutado bem ...”.
Trcado em miúdos, algo mais
popularmente conhecido como "o importante é competir". Muitos anos
atrás, mais precisamente no dia 16 de julho de 1955, a história registra outro
episódio parecido envolvendo a equipe alemã, porém executado com mais
discreção. Naquela corrida o carro de Juan Manuel Fangio teve as relações de
marcha trocadas secretamente durante a noite de sexta para sábado com o intuito
de corroborar para a decisão do chefe de equipe Alfred Neubauer, que determinou
a vitória de Stirling Moss.
Criador dos Jogos Olímpicos Modernos, Pierre de Frédy não
viveu para acompanhar uma corrida de F-1 (faleceu no dia 2 de setembro de 1937,
aos 74 anos de idade) e certamente jamais esperaria que esportistas de qualquer
modalidade fizessem o que a Mercedes fez domingo. Colin Chapman, porém,
certamente teria sido um personagem mais caro ao nobre francês do que Toto
Wolff, mesmo se levarmos em consideração a forma como o título do Campeonato
Mundial de 1978 foi decidido; nesse ano o célebre inglês contratou Mario
Andretti e Ronnie Peterson para pilotar seus Lotus 79, os carros imbatíveis da
temporada que consagrou o efeito-solo na categoria. O lado olímpico disso é que
sempre ficou claro que o sueco deveria andar atrás do estadunidense, que
sagrou-se campeão mundial com 64 pontos, contra 51 do seu companheiro de equipe
e 48 do argentino Carlos Reutemann. Detalhe: Peterson não disputou a temporada
inteira pois faleceu um dia após sofrer um acidente na largada do GP da Itália,
antepenúltima etapa do ano
Já a história da Mercedes na temporada de 1955 teve 50
tons de prata. Naquela temporada Fangio e Moss dominavam o GP de Mônaco até que
a disputa entre ambos causou o abandono de ambos por quebras mecânicas , panes
que garantiram a vitória a Maurice Trintignant, com Ferrari. Duas semanas
depois, Fangio venceu o GP da Bélgica liderando as 36 voltas no clássico
traçado de Spa-Francorchamps, que então media 14.080 metros. Apesar da
diferença de oito segundos sobre o inglês, que terminou em segundo lugar, a
intensa disputa entre ambos levou o time alemão a realizar uma reunião para
discutir como os pilotos da equipe deveriam se portar na pista.
Naquele ano além de Moss e Fangio a Mercedes inscrevia
normalmente três ou quatro carros em cada prova, monopostos que foram entregues
alternadamente para os alemães Karl Kling e Hans Hermann, o italiano Piero
Taruffi e o francês André Simon. O argentino pediu a palavra e colocou que a
vantagem da Mercedes era tamanha e que não havia necessidade para que os
pilotos da equipe se arriscassem tanto e propôs um acordo de cavalheiros, como
consta de sua autobiografia escrita a quatro mãos com o respeitado historiador
argentino Roberto Carozzo:
“...Eu creio que a melhor coisa a fazer é permitir que
possamos disputar como gostamos até garantir uma vantagem sobre os nossos
adversários. Uma vez garantida essa vantagem receberemos um sinal dos boxes
para diminuir o ritmo. Aquele de nós que estiver liderando nesse momento vai
liderar até o fim e quem estiver em segundo vai ficar em segundo até a
bandeirada...”
Na corrida seguinte, o GP da Holanda, em Zandvoort, o
plano foi posto em prática e novamente Fangio venceu de ponta a ponta, ainda
que por apenas 2/10 de segundo. Um mês depois chega a hora do GP da
Grã-Bretanha e a Mercedes queria por que queria garantir que Stirling Moss
saísse vencedor; os alemães tinham lá dois bons motivos para isso: capitalizar
a promoção de um piloto da casa triunfar em Aintree, pista situada próximo de
Liverpool e hoje incorporada ao jóquei clube local, e recompensar o inglês por
sua antológica vitória na Mille Miglia daquele ano. Foi nessa corrida italiana
de estrada, disputada nos dias 30 de abril e 1ode maio, que Moss e o jornalista
inglês Dennis Jenkinson consagraram o uso de um livro de bordo e da comunicação
entre piloto e navegador, tarefa para a qual usaram intercomunicadores com o
microfone instalado junto à garganta de cada um deles e não junto aos lábios.
Durante a prova Jekinson ia “cantando” o roteiro para Moss, que se preparava da
melhor forma para o trecho à frente.
Terminado o treino de sexta-feira Stirling Moss garantiu
a pole-position (2’00”4) e dividiu a primeira fila com Juan Manuel Fangio
(2”00”6) e o francês Jean Behra (Maserati, 2’01”4). Minutos mais tarde Alfred
Neubauer reúne seus pilotos e deixa claro ao argentino que Moss deveria vencer
a corrida disputada na ensolarada tarde de sábado, algo que foi aceito. Para
garantir que suas ordens fossem cumpridas, Neubauer não titubeou em ordenar que
as relações de marcha do carro de Fangio fossem trocadas.
Meses antes de morrer, no dia 17 de julho de 1995, tive a
oportunidade de visitar Fangio em sua revenda Mercedes-Benz em Buenos Aires
para uma entrevista que durou boas duas horas. Apesar de algumas limitações
impostas por sua saúde, “El Quíntuple” (como o penta-campeão mundial nascido em
Balcarce é tratado pelos argentinos mais fanáticos), estava falante e, como
sempre, sem reservas para expor suas opiniões. E foi assim que revelou algo
que, por motivos diversos, não está na já citada autobiografia:
“Eu descobri que tinham trocado a relação do meu carro e
não gostei nada daquilo. Decidi que ia mostrar na pista que sou um homem de
palavra e que aquela atitude não era necessária.”
De fato, Fangio liderou as duas primeiras voltas e da 18aaté
a 25ae nas demais manteve-se colado a Moss até a bandeirada, que o inglês
recebeu na 90a vez que completou o circuito de 4.828 metros e apenas 2/10
de segundo à frente do argentino. Moss foi o primeiro piloto inglês a vencer o
GP britânico, mas naquele ano foi sua única vitória no campeonato, onde
terminou em segundo lugar, com 23 pontos, contra 40 de Fangio. Vale registrar
que essa prova marcou a estreia de Jack Brabham na categoria, a bordo de um
Cooper T40-Bristol e a última participação da Lancia; sem recursos financeiros,
uma semana depois a fárbica italiana entregou todo o material de sua equipe à
Enzo Ferrari. Ao final da temporada a Mercedes abandonou as competições por
causa do trágico acidente de Pierre Levegh em Le Mans, e Fangio mudou-se para a
Scuderia, onde conquistou o título de 1956 ao volante do icônico Lancia-Ferrari
D50 V8, chassi equipado com dois tanques de combustível externos instalados
entre as rodas.
A história reinterpretada
Por mais que se discuta se o desempenho de Valtteri
Bottas pode ou não ser colocado abaixo das habilidades de Lewis Hamilton, o que
se viu domingo em Sochi nem é novidade e tampouco pode deixar de ser
classificado como surpreendente ou decepcionante. Brasileiros, como Rubens
Barrichello, passaram por isso várias vezes, tal qual o austríaco Gerhard
Berger, que foi recompensado com a vitória no GP do Japão de 1991 depois de uma
batalha antológica contra Ayrton Senna. Pelo menos nessa ocasião, em Suzuka, o
acordo entre ambos foi divulgado ao final da corrida em que o brasileiro deixou
o austríaco ultrapassa-lo a poucos metros da linha de chegada. Berger aceitou
assumir o papel de escudeiro e trabalhar durante a teporada em função do
brasileiro que, uma vez vitorioso no campeonato, se comprometeu a inverter os
papéis.
A maneira como ocorreu a troca de posições entre Bottas e
Hamilton foi tão descarada dentro e fora das pistas que ainda ontem a manobra
provocava discussões. Houve a mentira de mencionar que um pneu traseiro do
carro de Hamilton tinha problemas e Sebastian Vettel se aproximava
perigosamente e a verdade de Bottas. que conquistou a pole position e liderava
com autoridade a corrida disputada em torno do parque olímpico de Sochi. Além
disso, por mais que a decisão faça sentido no que diz respeito a garantir o
retorno do investimento da Mercedes na F-1 tal atitude pôs em risco um futuro
que pode garantir retorno financeiro extra aos pilotos e equipes: a Liberty
Media, detentora dos direitos comerciais da categoria, deve anunciar em breve
um esquema de apostas para o campeonato mundial.
Em resumo, a forma como o GP da Rússia foi decidido não
foi inédita; tampouco resta alguma dúvida que o modo como isso foi aconteceu é
um sinal dos tempos atuais, onde cada vez mais os fins justificam os meios.
O resultado completo do GP da Rússia e a classificação do
campeonato, onde Lewis Hamilton lidera com 306 pontos, 50 à frente do
vice-líder Sebastian Vettel, terceiro colado, você encontra aqui.
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