Imortal, Lauda parte aos 70 anos
Raros nomes do automobilismo mundial, e poucos no cenário
mundial de negócios, conseguiram a unanimidade de Andrea-Nikolaus Lauda (foto
de abertura/Mercedes). Indivíduo dos mais motivados e focados, abdicou a
carreira de herdeiro de uma importante instituição financeira familiar para ir
atrás do seu ideal. Ao final de sete décadas de existência terrena
(22/2/1949-20/5/2019) deu seu último suspiro sempre ligado a grandes momentos
da F-1 e com a mesma emoção que o levou a conquistar três títulos mundiais e consolidar
seu espaço entre os grandes do esporte. O último título foi conquistado por
escasso meio-ponto e ao volante do icônico McLaren MP4/2 TAG. O pódio dessa
conquista, o GP de Portugal de 1984, é o retrato de uma era da F-1: nele
esse austríaco nascido em Viena foi ladeado por seu sucessor imediato,
Alain Prost e a então estrela em ascensão Ayrton Senna. Há alguns anos o
austríaco era o presidente não executivo da Mercedes-Benz e figura central no
programa de competições da marca.
Niki Lauda significa para o automobilismo muito mais que
um tricampeão mundial de F-1: seus outros títulos foram conquistados em 1975 e
1977. Capaz de misturar boas doses de frieza empresarial com a emoção de fazer
negócios de perfil glamoroso, ele investiu boa parte da fortuna construída em
terra em companhias aéreas; Lauda Air e Niki as mais importantes entre várias
outras associadas a companhias de maior porte. A paixão pela velocidade no ar
foi semelhante a aquela que o destacou nas pistas: ele possuía brevê para
pilotar vários aviões que compuseram a frota que cruzava os céus da Europa,
Ásia, Austrália, África e, por breve período, para capitais do nordeste do
Brasil.
Além dos Boeings 737 e 767 que Lauda pilotou, a companhia
aérea chegou a operar Boeing 777, Airbus A320 e Bombardier CRJ-100, todos eles
batizados sugestivamente com os nomes de Janis Joplin, Frida Kahlo, Ernest
Hemigway, Enzo Ferrari e até mesmo Ayrton Senna. Ao incomodar a Austrian
Airlines, companhia de bandeira do país, iniciou uma guerra política que
culminou na incorporação da empresa do piloto pela estatal austríaca. A Lauda Air
existiu de April de 1979 a julho de 2012 Anos mais tarde, entre novembro de
2003 e dezembro de 2017, Niki usou o apelido para batizar uma nova empreitada
no gênero low cost e que chegou a operar 84 aviões, incluindo sete Embraer ERJ
190, alguns deles batizados como Samba, Lambada, Calypso, Rumba e Tango. Estes
aviões atualmente são operados pela Helvetic Airways e voam nas cores da Swiss,
companhia que sucedeu à Swissair e incorporou a Crossair, cliente que lançou a
família E-175 da empresa brasileira.
Os dois títulos na Ferrari poderiam ter sido três
consecutivos: em um final de semana chuvoso na metade da temporada, em
Nürburgring, Niki Lauda tentou convencer seus colegas a não largar, cena
imortalizada no filme Rush, de Ron Howard, e gravada na mente de todos os
entusiastas do automobilismo desde a terceira volta do GP da Alemanha disputado
no primeiro dia de agosto de 1976. Ao se aproximar da curva Bergwerk o Ferrari
312 T2 número 1 avançou sobre a zebra e foi impulsionado contra o guard-rail do
lado oposto e, em seguida, atingido pelo Hesketh-Ford 308D de Harald Ertl e
pelo Surtees-Ford TS19 de Brett Lunger . No choque a estrutura de borracha do
tanque de combustível rompeu-se e provocou um incêndio. Ertl, Lunger e Guy
Edwards, que conseguiu evitar que seu Hesketh-Ford 308D atingisse o Ferrari,
tentaram retirar Lauda do cockpits, mas apenas o franzino italiano Arturo
Merzario conseguiu enfrentar as chamas o tempo suficiente para soltar a fivela
do cinto de segurança, que estava travada.
A ingestão de gases tóxicos foi quase fatal para o
austríaco, que após ser atendido no Hospital de Adenau foi transferido para a
Clínica Universitária de Mannhein, onde iniciou um longo e dolorido processo de
desintoxicação. Quarenta e dois dias depois o austríaco alinhava no GP da
Itália; sua cabeça ainda envolta em bandagens que cobriam queimaduras ainda escondia
o que restou de sua orelha direita. A força de vontade e o desejo de
sobreviver, porém, seguiam intactos. Da mesma forma, o respeito aos riscos
desnecessários o levou a abandonar o primeiro GP do Japão da história da F-1,
prova que encerrou a temporada daquele ano. Chovia forte na terceira volta
quando Lauda entrou nos boxes e foi sucinto ao declarar que era mais importante
sobreviver do que outra coisa. Danielle Audetto, então chefe da Scuderia
Ferrari, tentou convence-lo a dar uma justificativa diversa, alegando uma falha
no carro, mas não obteve sucesso na empreitada.
A F-1 caminhava para o final a temporada de 1979 e a
Brabham, equipe que defendia desde o ano anterior, chegava ao Canadá com dois
novos BT49, chassi equipado com motores Ford Cosworth V8 em lugar dos pesados e
pouco confiáveis V12 Alfa Romeo. Lauda completou 10 voltas no treino de
sexta-feira, parou no box e foi para o aeroporto de Mirabel, passando
rapidamente no hotel para pegar sua bagagem. Em que pesasse os esforços de
Bernie Ecclestone em tentar convencer a todos de que Niki não se sentia bem,
não demorou muito para que todos soubessem que ele, conforme suas próprias
palavras, estava “cansado de ficar andando em círculos” e que o argentino
Ricardo Zunino o substituiria a partir de então. Três anos depois ele voltava
para coroar sua carreira com tries temporadas na McLaren e seu terceiro título
mundial.
Lauda voltou às pistas em 1982, aceitando o convite de
Ron Dennis para disputar três temporadas. Nos muitos anos que acompanhei a F-1
tive inúmeras oportunidades de entrevistar e interagir com Niki Lauda, como
aquele momento de coragem do repórter em começo de carreira nos treinos livres
para o GP de 1976, no Interlagos de oito quilômetros, até para falar da Lauda
Air durante um GP de 1998. Ao mencionar meu interesse em voar por sua empresa
aérea para o GP da Austrália de 1999 ele me aconselhou a procurar um certo
funcionário em Londres. Ao ligar para o executivo descobrir que Niki tinha
instruído para facilitar a emissão de meu bilhete para Melbourne.
Verdadeiro super-homem, Andreas-Nikolaus Lauda vendeu seu
Porsche 911 para investir na sua carreira, no seu ideal de felicidade,
contrariando Ernst-Peter Lauda, seu pai, importante banqueiro austríaco.
Sobreviveu ao desafeto paterno, a um incêndio em Nürburgring, a um transplante
de rim, outro de pulmão, construiu e se desfez de empresas aéreas, foi três
vezes campeão mundial de F-1, presidente não executivo de umas maiores fábricas
de automóvel do mundo e, mais importante do que tudo isso, sempre foi fiel a
seus princípios. Por tudo isso jamais será apenas uma lembrança para aficionados
do automobilismo: quem ouviu falar do seu nome sabe que ele é imortal.
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