Diz o velho ditado que a diferença entre o veneno e o
remédio é só a dose. Isso talvez possa explicar a decisão tão impopular da
Prefeitura de São Paulo sobre as velocidades máximas no complexo de vias
expressas conhecidas como Marginais dos rios Tietê e Pinheiros. No total, são
46 quilômetros, que em alguns trechos chegam a ter 10 faixas de rolamento, em
cada sentido.
Os limites anteriores de 90 km/h, 70 km/h e 60 km/h para
as pistas expressas, centrais e locais, respectivamente, eram viáveis e
seguros. Os limites caíram para 70 km/h, 60 km/h e 50 km/h. Aí vêm as
justificativas de 73 mortos por ano em acidentes somadas as duas vias, mas
faltaram explicações essenciais.
Nos EUA, os índices de acidentes fatais são obtidos pela
divisão do número de mortes pela multiplicação da frota e distância percorrida.
Essa é a forma mais correta de calcular a letalidade de uma via. Estudos da CET
estimam o tráfego de cerca de 800.000 veículos/dia nas duas marginais. Então a
primeira pergunta que a Prefeitura ainda não respondeu: qual é o índice de
letalidade calculado da forma correta, mesmo aproximado, em comparação a outras
vias no Brasil e no exterior?
Para se ter ideia, a ONU estima que 1,2 milhão de pessoas
morrem todos os anos ao redor do mundo em acidentes de trânsito, incluídas ruas
e estradas. Será que o índice é menor ou maior do que, por exemplo, o da
avenida Brasil ou das linhas urbanas expressas da capital do Rio de Janeiro,
onde o limite de velocidade é maior que em São Paulo? Também fica difícil
entender o que levaria um pedestre em São Paulo a atravessar as pistas
expressas, pois do outro lado só existe um rio poluído. No entanto, vários
ambulantes circulam entres os carros e não são retirados pela polícia.
Muitas teses
Declarações atabalhoadas igualmente não ajudam.
Porta-vozes da Prefeitura explicam que um carro a 90 km/h precisa de 140 metros
até parar totalmente, já incluída o tempo de reação do motorista, estimado em 2
segundos. Publicações que fazem testes mostram que automóveis atuais (não os de
80 anos atrás) precisam de apenas 40 metros em média, mais 50 metros para um
teórico tempo de reação. Assim, os números divulgados são 55% maiores que os
reais.
Outra tese aponta que, em velocidades menores, os
veículos tendem a rodar mais próximos uns dos outros e "isso equivaleria a
aumentar o fluxo". Mas a capacidade de escoamento deve ser levada em
conta. É muito comum uma via congestionar até vir a explicação: carros parados
no acostamento em decorrência de um acidente, por exemplo, fazem os outros
motoristas diminuir a velocidade pela curiosidade natural. O congestionamento
aumenta e não diminui.
Intervenção
exagerada
Recentemente, o prefeito Fernando Haddad afirmou em uma
entrevista que tudo não passa de uma "experiência" e que poderia
reverter a medida. Ou seja, não há certeza da necessidade da redução. Centenas
de placas teriam que ser trocadas de novo, por exemplo.
Há os que desconfiam, mais uma vez, da "indústria de
multas". Os 55 radares nas duas vias marginais aplicam 2.000 multas por
dia. É tanto dinheiro que se incorporou ao orçamento geral da cidade. E como a
imensa maioria de outras administrações públicas, a de São Paulo deixa de
aplicar o total arrecadado em melhoramento viário e educação de trânsito,
conforme manda a Lei. Em outras palavras precisamos fiscalizar os fiscais e
isso não vem de hoje.
Essa dose de intervencionismo é exagerada, desnecessária
e deveria ser revertida pela Justiça ou espontaneamente sob tantas críticas.
Trata-se de pura mentalidade anticarro para desespero do
doente, que tem medo de envenenamento em vez de ser curado ou pelo menos bem
medicado.
PERFIL
Fernando Calmon (fernando@calmon.jor.br),
jornalista especializado desde 1967, engenheiro, palestrante e consultor em assuntos
técnicos e de mercado nas áreas automobilística e de comunicação. Sua coluna
automobilística semanal Alta Roda começou em 1999. É publicada em uma rede
nacional de 85 jornais, sites e revistas. É, ainda, correspondente no Brasil do
site just-auto (Inglaterra).
Siga também através do twitter: www.twitter.com/fernandocalmon
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