Coluna 5217 29.12.2017
- edita@rnasser.com.br
|
De Alpines novos e antigos
Em 2018 Renault comemorará 120 anos de surgimento e 20 da
operação Brasil. Eventos imagináveis pelas pretensões da empresa: ser, com
Nissan e Mitsubishi, terceiro grupo de automóveis no mundo. Aqui, bem marcar o
crescimento constante, sucessivo e consistente, mostrar estar presente desde
1959 via sociedade com a Willys-Overland para fazer seus produtos – Dauphine,
Gordini, 1093, Interlagos -, e a herança do R 12 aqui chamado Corcel.
Alpine
Um dos eventos nacionais será apresentar o Alpine A110,
redivivo esportivo inspirado no mítico vencedor de rallyes,
produzido no Brasil, México, Espanha e Bulgaria. Aqui, graças ao
talento dos pilotos e da Equipe Willys, mudou a vocação de rallye,
tornando-se vencedor em circuitos de velocidade.
Novo A110 utilizou a base conceitual criada pelo também
mítico Jean Rédélé: aerodinâmica e pouco peso. Relativamente ao original,
inverteu a posição do motor, girando-o da popa à entre eixos traseira –ironia,
copiou a solução então dita alucinada, de 1965 pelo piloto carioca Ricardo
Achcar, e viabilizada pelos lusos irmãos Ferreirinha, de trocar o motorzinho
L4, 850 cm3, traseiro, por um V8 2.500 cm3 entre eixos. (Perceba a emoção do
autor no texto abaixo.)
Base
Projeto Alpine supera o patamar de ser apenas mais um
produto. É projeto de esportividade, começando com equipe e motores na Fórmula
1, patrocínio de categorias no automobilismo, como a Copa Alpine, abertura de
novo segmento de mercado. Há anos a Renault assumiu a Alpine e agora refez a
fábrica de Dieppe, França, onde a marca nasceu e cresceu.
Não se baseia na proposta nacional do designer João
Paulo Melo, levada à Renault Brasil, de baixo custo para industrialização. O
novo Alpine A110 não utiliza carroceria em compósito de fibra de vidro, mas de
alumínio, em processo único no mundo; motor da aliança Renault-Nissan – fase
pré-Mitsubishi -, L4, 1.800 cm3, 16 válvulas, turbo, 270 cv de potência, 320 Nm
de torque. Transmissão distante da original: automática, dupla embreagem, sete
velocidades, tração traseira.
O
que faz
Combinação de potência com baixo peso, menos de 1.100 kg,
oferece larga dose de alegria. Muito esperto, 4,5s de 0 a 100 km/h e velocidade
final de 250 km/h.
Vinda será para tatear o mercado pós queda do
artificialismo dos 30 pontos adicionais no IPI; quantificar interesse dos
revendedores – os definidores do sucesso ou fracasso do produto –;
pesquisar mercado para quantificar vendas, determinar investimento em
homologações, treinamento de vendas e assistência.
Deverá ser atração no Brazil Classics
Show, mais elegante dos encontros de automóveis antigos no país, realizado
em Araxá. Neste ano, de 31.maio a 03.jun. A Renault será o
principal patrocinador. Preço? Na Europa versão de entrada vendeu série inicial
de 1955 unidades a 58.500 Euros. Lançamento das berlinette em
versões Pure e Legend será no Salão de Genebra, março.
O início:
Achcar-Simca-Santa Fúria
O carioca Ricardo Achcar, gerador de ideias e moda,
filho de família de muitas posses, de tudo fez – e bem. Piloto, construtor de
automóveis, pioneiro em caminhos europeus, pilotou com Luizinho Pereira Bueno
na SMART, equipe inglesa de Fórmula Ford, comandada pelo multi mídia e hoje Sir
Stirling Moss.
E promoveu casamento teoricamente impossível:
Berlinette Willys Interlagos com motor Simca - entre eixos! Trabalho de
engenharia de coragem, pois o projeto original do Alpine A 108, fabricado no
Brasil como Interlagos, era baseado numa treliça central envolta em fibra de vidro,
carro para exclusivo motor traseiro. Mas Achcar aplicou-o entre-eixos com apoio
dos irmãos Ferreirinha, Herculano e Antônio, depois fabricantes dos Fórmula
Heve.
Dele são os comentários e o texto escrito para os
originais do inédito livro por mim cometido sobre a história do Simca.
É muito bom, dá ótimo
cenário de época, pela avulsiva redação de Brimo Achcar. Não acatei sua ameaça, pois
editei o amplo texto para caber na Coluna.
Assumo meus direitos
de Publisher, aproveito o
recém passado Natal para oferece-lo como lembrança aos leitores apreciadores de
história dos automóveis nacionais. (R Nasser)
“Se você alterar uma
vírgula eu nunca mais peço para Maomé te dar um camelo. Fique rico e não me
dirija mais a palavra.“
“ BRIMO! Escreve o que
e como quiser. Suas palavras tem o cheiro do tempo e do vento - CHIM-EL HAUA, o
cheiro do vento...”
A CAPOTAGEM DO MILTON AMARAL E O SANTA FURIA
Ricardo Achcar
" - Tudo começou nas 250 Milhas de São Paulo,
1965. Milton Amaral e eu estávamos com gosto de sangue na boca. Tínhamos feito
os 1.000 Quilômetros em Interlagos com Berlineta Interlagos
850cc de motor muito bem preparado pelo Antônio Ferreirinha, e suspensão
apreciada pelo ícone Ciro Caires, piloto cuja característica era compartilhar
tudo que podia em prol do esporte motor.
Era madrugada e tínhamos rodado como um relógio. O
único incidente comum na neblina de Interlagos foi com o Milton, perdendo a
segunda tomada da Curva do Sol e, para não sair barranco afora pela externa,
forçou uma rodada e ficou no meio da pista virado ao contrário, motor morto,
carburador Solex de corpo duplo afogado, e dificuldade de dar partida.
Os segundos passaram, e o Milton tentava desafogar, mas
era tarefa para a bateria perder o fôlego. E adivinhou na densa neblina, estar
parado num ponto de desgarro de tangencia, e que logo, logo, alguém ia chegar
por ali. Entre pensar e enxergar, quatro luzes cresceram meteoricamente diante
do pára brisas e passaram fulminantes de cada lado da Berlineta... Toco e Jaime
Silva com as Simca Abarth. O motor pegou, Milton parou no box, e eu assumi o
volante.
Após 3 horas trocamos posição. Às 9h a neblina
levantava numa manhã exclusiva de Interlagos e Le Mans. Aquela camada
levantando na reta dos box e no Retão, e o baixo circuito jogando para fora da
neblina, aos ouvidos dos assistentes, o rasgo dos motores com a incógnita de
quem ia chegar na subida da Curva da Junção. Estávamos em 9º lugar e gente boa
vinha capengando e quebrando. A 40’ da chegada, em 2º lugar, na Curva do
Pinheirinho, terceira marcha engatada, a alavanca de câmbio da Berlineta ficou
na mão do Milton. Chegamos com frustração eterna. Afinal, o motor era de apenas
850cc.
Por isso, nestes 250 Quilômetros, na
quarta volta, o Milton, muito rápido, atacou a Curva da Ferradura por fora,
passou dois concorrentes e, sob nossos olhos soltou a Berlineta numa derrapagem
controlada para ficar por dentro na Subida do Lago. Manobra para pilotos
excepcionais. Mas, infelizmente, pegou um cascalho de beira de pista,
e foi para o brejo capotando violentamente. Por sorte
saiu ileso...
Resultante, tínhamos a
disposição de mudar: em vez da
Berlineta uma Trolineta!
Começa
Herculano Ferreirinha recebeu a Trolineta ex-Berlineta
em sua oficina em Vila Isabel, Rio de Janeiro. "Eu sou
lanterneiro. Fibra de vidro não é a minha praia."
Mas adquiriu bons conhecimentos, aplicados ao
construir carros de corrida.
O chassis de espinha central do Jean Rédélé formava
estrutura misturando tubos de aço com fibra de vidro, primórdio dos monocoques
como conhecemos hoje. Ora, na violenta capotagem, o solavanco aplicado pelo
motor na treliça integrada, provocou torções e deformações e, para corrigir,
exigiria corte e remendo, com uso de solda autógena e certeza de incêndio
geral. Risco e oportunidade provocaram-me considerar nova forma ao automóvel,
ante perfis assemelhados entre a Lola GT de Le Mans e o possível da moribunda
Berlineta.
Aí surgiu o *Manoel Truviso, habilidoso, equilibrado e
criterioso. Pau para toda obra, perfil rasante, não se fazia notar. Um bom
pedaço do Simca-Achcar Santa Fúria teve as mãos e a inteligência do Manoel,
somadas ao trabalho e ao comando de equipe do Herculano.
Assim tornei-me "designer" da Trolineta, e
minha imaginação espacial alarmou os portugueses e meu co-piloto Amaral, pois
indicava, não seria coisa confiável.
Muito do projeto e
execução vinha das palavras do Ciro Caires, disparando processo de elocubração,
misto de invenção e vontade de ganhar corrida, sem limite razoável dentro de
mim. Mas eu acho, deve ser assim.
Ao Antônio não
importava se o carro ia fazer curva ou segurar nos freios, mas como pendurar um
motor num chassis de espinha central. Em sua inconformada cabeça o motor
ficaria do meu lado direito - e
de fato não ficou muito longe. Ao final, resultado prático, me incendiou a
nuca meia dúzia de vezes antes de me vencer. Dava medo. A "porra" dava
um tiro, e queimava a nuca aos berros, com assobio de caldeira e locomotiva na
cabine da enfurecida Trolineta.
História
Mas antes espumar no cockpit rolou
muita água. Ciro nos recebeu na fábrica da Simca, ouviu-me e ao Antônio, e
disse – "Segura aí que vou falar com o Chico" (Chico era
o Landi, ícone das corridas, chefe do departamento de competição Simca). Era
da melhor qualidade como pessoa, mas tinha birra de "cariocas e suas
baboseiras" - e ninguém lhe tira a razão. Landi só atendeu por ter sido
pedido do Ciro, com motor de 142 HP medidos em dinamômetro, o melhor que
tinham. Ciro Caires é um nome inesquecível na minha agenda de recordações.
O Fazer
A propriamente dita
amarração da treliça de suporte do motor na Trolineta Santa Fúria é de
complicada narrativa: dois canos de parede grossa saiam do tronco central no
limite traseiro, erguiam-se até 15 cm do coletor de admissão, carburadores e os
cabeçotes planos, em alumínio. O bloco motor, em ferro, tinha um par de
suportes estruturais, permitindo amarração de responsabilidade.
No encontro dos tubos
ascendentes, o suporte da carroceria do chassi original, colocamos mais um tubo
de suporte, fechando um triângulo estrutural.
Problema sem solução
era a pouca espessura do eixo piloto da caixa de 5 velocidades criação do
preparador Colotti, suprimindo anéis sincronizadores, aplicando engrenagens com
dentes retos. Fora projetada para Renaults 4 CV, Dauphines e Gordinis e motores
750 e 850 cm3 – não o V8 2500. Um duplo H, definia: primeira à esquerda,
abaixo; quinta igual, à direita; ré oposta, para cima. O trambulador foi
criação do Manoel exigindo nanoprecisão – ou se quebraria.
Outro era o sistema de arrefecimento. Radiador
frontal, abaixo do motor, com caixa de compensação e sangradores para eliminar
bolhas de ar. Bem calculado, mas fomos vencidos por um detalhe de
verificação. O diabo está nos detalhes.
Voltando ao conjunto geral do carro, não foi difícil
constatar, o aumento de peso ocasionado pelo motor baixo e entre eixos,
respondeu ao resultado projetado.
O motor girava 6200 rpm e podia chegar a 6400, sem
ponto fraco de quebra. Era muito resistente com limite definido pelo sistema
arcaico de varetas de válvulas. Mas à época não havia carro para arrancar na
frente do Santa Fúria. Em relação ao conjunto,
estabilidade e aderência limitadas pelos pneus radiais concebidos para
derrapagem controlada.
Referência
O Simca-Achcar foi apelidado “Vem quente que
eu estou fervendo...“ pelo jornalista Marcus Zamponi. Colou, e em nada
enobrece a minha obra.Razão estava no fato de, após algumas voltas, quando a
temperatura da água chegava aos 103 ou 104 graus, a mangueira de saída inchava,
se soltava espirrando a água fervente no meu pescoço.
Resumo a história: o sistema de arrefecimento do motor
contava com o de melhor na indústria do país. Radiador celular Bongotti,
aumentando o percurso da água, e o máximo de canais vazantes. Pedimos com
capacidade para 11 l, mais a estocada nos canos de transporte, com diâmetro de
1 ½”. A bomba era poderosa, resistente, desenvolvida pelo Chico Landi, e o
motor sempre com total rendimento e potencia – e nunca fundiu.
Não aquecia por falta d'água, porém por má troca de
calor no sistema baseado em alta pressão. Tantos anos passados creio, o
problema estava na pressão formada pelo sistema de devolução dos estimados 11 l
d’água.
Explicação
Numa noite, quatro anos
após, entrei no box de corrida na minha casa, e pedi ao Antônio me ajudar a
medir a capacidade do radiador do Simca-Achcar: os 11 litros encomendados
foram, na verdade física, apenas 7...
Silenciosos nos entre
olhamos, fechamos a porta do box, e fomos para a Montenegro, hoje Vinicius de
Moraes e lá, no Garota de Ipanema, pedimos uns baldes de cerveja. Então, sem
aviso algum o Português começou a esbravejar e a soltar impropérios que fariam
Cabral ir de volta para Portugal. Bebia, espumava, me respingava. Eu fiquei
calado e murcho.”
Ps: Há tempos busco localizar o Santa Fúria – ou seus
restos, ou a história de seu fim. Se você souber, mande-me um e-mail. O Museu Nacional do Automóvel agradecerá.
(RN)
Nenhum comentário:
Postar um comentário