Futuro
no passado
A presença da F-1 virou
sinônimo de autódromos modernos, eficientes e organizados. O que veremos no
Brasil neste final de semana é um circuito inacabado, talvez por ter sido
negado aos automobilistas brasileiros e arrendado para festivais de música.
Nas
últimas quatro décadas passei boa parte da minha vida profissional cobrindo a
F-1: durante a temporada eram viagens semanais a locais tão díspares quando o
centro de Dallas, o interior da Styria e pela Floresta Negra de Nürburgring,
entre tantos outros circuitos que surgiram, desapareceram ou que ainda
resistem. É verdade que de 1977 até hoje as exigências e as necessidades
mudaram, o número de profissionais atuando nos paddocks cresceu e, por tabela,
a infra-estrutura de cada evento agigantou-se. Mesmo assim, praticamente todas
as pistas por onde a categoria passou e passa sempre estavam nos trinques na hora
do grande show.
Quando meu colega Fernando Tornello
e seu sócio Felipe McGough decidiram reviver, no início da década de 1990, o GP
da Argentina, chegara a hora de adaptar o antológico Autódromo Oscar y Juan
Galvez às exigências de então. Posso dizer que foi feito um esforço digno de
nota para que a “carrera” saísse a contento e o cenário estivesse minimamente
de acordo. Do outro lado do mundo, quando Tomonoru Tsurumaki resolveu, no auge
da onda de riqueza que banhou o Japão na década anterior, construir o circuito
de Autopolis, nenhuma economia foi feita para erguer uma pista no meio de Aida,
vilarejo que ficava em uma rara região de muito mato desse país. Aliás, terra
onde é criado o gado wagyu, cuja carne provoca crises existenciais nos
argentinos, tamanha sua maciez e seu sabor. A lista de autódromos funcionais e
de elefantes brancos é vasta, esta última marcada por grandes contribuições do
primeiro arquiteto do reino de Ecclestoneshire, Hermann Tilke.
Cá entre nós, porém, nem tudo flui
com a mesma intensidade e viço. Nomes como Marcos Silva Jardim e David Cardeman
criaram obras majestosas. Jardim foi responsável pelo seguro e funcional
Autódromo de Goiânia, que revitalizado faz renascer o automobilismo no Planalto
Central. Da prancheta — sim, prancheta — de Cardeman saiu um circuito que se
encaixou perfeitamente no ambiente “cidade maravilhosa”: seus boxes com teto
semicircular e a paisagem marcante do entorno são verdadeiras impressões
digitais de uma era de ouro do automobilismo internacional.
Se Goiânia renasceu dos escombros,
Jacarepaguá sucumbiu à ganância e irresponsabilidade de políticos,
provavelmente corruptos, que destruíram uma praça de esportes consolidada
mundialmente para construir não um, mas dois centros esportivos — para os Jogos
Panamericanos e para Jogos Olímpicos — sobre o asfalto que recebeu a F-1, a
F-Indy, Mundial de Motociclismo e todas as grandes categorias brasileiras.
Ainda que não houvesse terrenos
disponíveis na cidade, nem assim se justificaria a derrubada de um autódromo e as
deslavadas e inverossímeis promessas de uma nova pista em documentos firmados
por políticos e cartolas pouco devotados à causa esportiva. Tal qual deputados
que dizem não saber possuir contas bancárias na Suíça, há cartolas que
anunciaram sua decisão de acorrentar ao portão de Jacarepaguá para evitar sua
demolição. O autódromo foi destruído e não há qualquer indício de que a
Confederação Brasileira de Automobilismo tenha comprado corrente e cadeado…
Eis que neste fim de semana a F-1
volta a Interlagos, cuja planta original oferecia um traçado digno do professor
exigente que forma alunos dignos de grandes láureas. O percurso original,
criado em 1931 pelo engenheiro Louis Romero Sanson e pelo arquiteto Alfred
Hubert Donat Agache, media oito quilômetros em curvas de todos os tipos e para
todos os lados, fossem planas, em subida ou descida. Enfim, um circuito
completo onde os espectadores postados em torno do anel externo podiam ver 90%
de toda a pista.
O desenvolvimento urbano jamais
planejado — ou o que dizer da permissão de criar escolas junto ao muro do
autódromo? — e a visão curta da cartolagem do esporte — salvo as honrosas
exceções — nunca souberam ou quiseram trabalhar para a comunidade que gera empregos,
paga impostos e dá suporte a pilotos que geram empregos e pagam impostos ao
desenvolver suas carreiras. O afã de concordar com as necessidades plásticas da
F-1 — um circuito com extensão x, que padronizasse a estrutura e logística dos
GPs em nível mundial —, impediu que se fizessem as alterações sem mutilar a
obra de Sanson e Donat Agache. Pior, mutilaram e trucidaram de forma a demandar
reformas constantes e caras que só se justificam nestas terras onde plantando —
ou mentindo — tudo dá.
Será que jamais alguém pensou que se
em vez de montar e desmontar arquibancadas tubulares anualmente seria
mais interessante construir outras de concreto, formando assim galpões para
equipes e indústrias especializadas funcionassem sob elas? Manter essas áreas
ocupadas por pessoas com interesse direto no local aumentaria a segurança e
diminuiria ou extinguiria os roubos e depredações que ocorrem regulamente nas
instalações do autódromo. Não: se alguém pensou, não foi ouvido. Afinal, há
poucos dias a empresa que administra o autódromo (SPTuris, cujo principal
acionista é a Prefeitura de São Paulo), dispensou de seus quadros o engenheiro
Francisco Rosa, que dedicou a maior parte dos seus 72 anos ao automobilismo em
duas vertentes, a de apaixonado e a de profissional. Ou seja, abriu mão de
alguém com a necessária formação, cultura e paixão para fazer o sistema
funcionar.
O
desligamento de Rosa faz lembrar que se contam nos dedos com unha encravada os
nomes que se envolveram no automobilismo paulista com visão empresarial que
fizeram algo significativo. Wilson Fittipaldi, Eloy Gogliano, Antônio Carlos
Scavone, Mário Pati e Antônio Carlos Avallone bem que tentaram, em duplas ou
solitários, mas esse trabalho não teve continuidade. Se antes os pilotos tinham
prêmios de largada e chegada e o público pagava para assistir as corridas, hoje
os pilotos pagam para correr e o público recebe ingressos e uma ou outra
mordomia para assistir alguma corrida mais importante.
Pior de tudo isso é saber que o
automobilismo de raiz ainda respira, mas a agilidade paquidérmica dos
dirigentes e promotores locais impedem que Interlagos reviva. Há disputas em
praticamente todos os níveis e basta uma categoria despontar para que olhos cresçam
em torno dela e sufoquem a semente. Pior, gastam-se milhões de reais para
reformar o autódromo de uma forma que não ficou pronta a tempo do GP desde
próximo domingo. Assim caminha o automobilismo paulista, que já foi o mais
importante do país. Ainda que seja relativo o que a comunidade internacional vá
dizer e pensar do palco onde se apresenta neste fim de semana, bem que o nosso
esporte poderia dar uma amostra, por menor que fosse, de que nem tudo está
perdido no Brasil.
WG
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